Por que falamos tão pouco sobre autismo em meninas?
Como pediatra com experiência com crianças e adolescentes com transtorno do espectro autista (TEA) e hipermobilidade, eu já presenciei inúmeras histórias de sofrimento silencioso de meninas que passaram anos lutando para se encaixar em um mundo que não compreendia suas dificuldades. O diagnóstico de autismo nelas muitas vezes é retardado, ou mesmo negligenciado por suas manifestações serem frequentemente sutis e facilmente confundidas com transtornos de ansiedade, depressão ou até com características de personalidade “tímida”. Quando somamos a isso a presença de condições como a hipermobilidade e comorbidades associadas, o diagnóstico se torna ainda mais complexo. Mas essa complexidade não deve ser sinônimo de incompreensão.
Durante a adolescência, quando as mudanças hormonais da puberdade se intensificam, essas meninas começam a manifestar dores musculares, fadiga intensa e disfunções autonômicas, como a Síndrome da Taquicardia Postural Ortostática (POTS). Tais sintomas muitas vezes são atribuídos à ansiedade, desviando o foco do real problema. Isso faz com que suas queixas não sejam tratadas como deveriam, levando-as a um isolamento ainda maior e reforçando a sensação de invisibilidade.
Neste artigo, quero compartilhar um pouco da minha experiência, tanto profissional quanto pessoal, para trazer à tona a importância de um olhar atento, acolhedor e diferenciado para as meninas autistas. Espero que, ao final da leitura, pais e profissionais de saúde possam enxergar essas meninas com mais empatia e oferecer um suporte que realmente as ajude a florescer.
A Jornada Invisível das Meninas Autistas
Meninas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) frequentemente apresentam características diferentes das observadas em meninos. Elas tendem a internalizar mais suas dificuldades, desenvolvendo estratégias de camuflagem social para se adaptar ao ambiente e não chamar atenção. Por isso, é comum que suas peculiaridades sejam subestimadas ou não vistas como sinais de autismo.
Eu mesma, como pediatra e mãe, demorei a perceber certos aspectos em mim e em algumas das minhas pacientes. Quando comecei a atender crianças e adolescentes com hipermobilidade e autismo, fiquei intrigada com a quantidade de meninas que chegavam ao consultório com queixas comportamentais e emocionais exacerbadas na adolescência, muitas vezes acompanhadas de dores crônicas e fadiga intensa. Em alguns casos, os sintomas físicos eram erroneamente interpretados como ansiedade ou depressão, enquanto o real problema — o autismo associado à hipermobilidade — continuava não diagnosticado.
Mas por que isso acontece? A resposta está no próprio diagnóstico de autismo. Historicamente, os estudos do TEA usaram predominantemente a população masculina. Apenas recentemente estamos aprendendo sobre a representação feminina do autismo.
Meninas autistas apresentam manifestações que fogem do estereótipo tradicional. Elas são mais propensas a hiperfoco com temas sociais, artistas, desenhos, personagens fictícios ou animais, ao invés de áreas mais “típicas” como dinossauros, astronautas ou números. Além disso, suas habilidades linguísticas e de comunicação não-verbal muitas vezes são mais desenvolvidas, contribuindo para mascarar o diagnóstico.
Hipermobilidade e Autismo: Uma Dupla Desafiadora
Nos meus anos de prática clínica, percebi um padrão recorrente: muitas meninas autistas também apresentavam hipermobilidade articular e outros sintomas relacionados ao Transtorno do Espectro de Hipermobilidade (TEH). A hipermobilidade é mais comum em meninas do que em meninos e costuma estar associada a dores articulares, fadiga e disfunções autonômicas, como a POTS.
Essas condições físicas costumam se manifestar justamente na adolescência, época em que o corpo passa por grandes transformações hormonais. Dores articulares e musculares, enxaquecas frequentes, fadiga persistente e episódios de tontura ou desmaios são algumas das queixas comuns, mas, novamente, esses sinais acabam sendo atribuídos a problemas emocionais. A ligação entre o autismo e a hipermobilidade em meninas é um campo ainda pouco explorado, mas sabemos que a desregulação do sistema nervoso, comum em ambos os casos, pode ser um elo importante para entendermos essa associação.
Em minha experiência, muitas dessas meninas acabam não sendo compreendidas. Já atendi casos em que os sintomas de hipermobilidade foram tratados como “manhas”, “preguiça” ou como “falta de força de vontade” para participar de atividades físicas. Isso só aumenta o sofrimento emocional e reforça a ideia de inadequação e incompetência que muitas dessas jovens já carregam.
Adolescência: O Ponto de Ruptura para Meninas Autistas com Hipermobilidade
A puberdade marca o início de um turbilhão de transformações físicas e emocionais. Para meninas autistas e com hipermobilidade, esse período pode ser especialmente desafiador. É nessa fase que surgem crises emocionais mais intensas, relacionadas ao TEA, como episódios de pânico, depressão, desregulação sensorial exacerbada (shutdown e meltdown). Além disso, muitas vezes, ocorre relacionada a hipermobilidade, alterações repentina de funções físicas, como fadiga extrema, dores articulares que prejudicam a prática de esportes, ou até mesmo dificuldade para se levantar da cama.
Infelizmente, a resposta mais comum dos profissionais de saúde é atribuir esses sintomas à “turbulência normal da adolescência” ou à ansiedade. Algumas dessas meninas chegam ao consultório já com uma lista de diagnósticos equivocados — transtorno de ansiedade, transtorno de personalidade borderline, transtorno bipolar — e carregando a culpa por não conseguirem se ajustar às expectativas.
O diagnóstico de autismo acaba sendo deixado de lado, mesmo quando há uma história de dificuldades sociais e comportamentais desde a infância. E, assim, essas meninas passam anos sem o suporte adequado, lutando para sobreviver em um ambiente que as sobrecarrega e esgota.
Desafios Diagnósticos: A Subjetividade do Autismo e a Hipermobilidade
O diagnóstico de autismo em meninas não é só um desafio por causa das diferenças de manifestação em relação aos meninos. A presença de condições associadas, como a hipermobilidade e a Síndrome de Ehlers-Danlos, adiciona uma camada extra de complexidade. Com frequência, meninas autistas com hipermobilidade apresentam um aumento nos distúrbios emocionais, comportamentais e sociais justamente na mesma época em que as dores, a fadiga e a disautonomia começam a se manifestar de forma mais intensa: a puberdade.
É como se a chegada da puberdade fosse um ponto de inflexão, onde o corpo e a mente não conseguem mais “sustentar” a camuflagem social que vinham construindo desde a infância. A partir desse momento, o cansaço físico e emocional se tornam tão intensos que é praticamente impossível continuar escondendo as dificuldades. Muitas relatam um sentimento de colapso iminente, e é comum que, nessa fase, surjam diagnósticos de transtornos de humor, ansiedade severa e até depressão.
Esses diagnósticos, embora possam ser parte do quadro, não abarcam a totalidade da experiência dessas meninas. O tratamento focado apenas no manejo da ansiedade ou da depressão não aborda as causas subjacentes e, assim, os sintomas continuam a se manifestar de forma recorrente. Somente com um olhar atento e multidisciplinar podemos enxergar a verdadeira extensão dessas condições e proporcionar um tratamento e acolhimento eficazes.
Quando os Sintomas Físicos São Atribuídos à Ansiedade
Um dos maiores erros que vejo na prática clínica é atribuir sintomas físicos, como dores articulares, taquicardia, enxaquecas e fadiga, exclusivamente à ansiedade. É claro que a ansiedade pode agravar os sintomas, mas precisamos considerar que, para meninas autistas com hipermobilidade, a dor e a fadiga são reais, e não “psicossomáticas”. Quando deixamos de reconhecer isso, enviamos a mensagem de que “tudo está na cabeça dela”, o que apenas reforça a sensação de isolamento e incompreensão.
Já atendi pacientes que, após passarem por diversos profissionais e ouvirem repetidamente que “não há nada de errado”, desenvolveram uma relação conturbada com seu próprio corpo. O nome disso é “gaslighting médico”. Essas meninas, muitas das vezes, começam a duvidar de si mesmas, a se culpar por não conseguirem fazer o que outras pessoas fazem com facilidade e a se verem como “fracas” ou “incapazes”. É uma dor profunda, que afeta não só o físico, mas também a autoestima e a identidade.
Nessas horas, precisamos parar, respirar fundo e refletir: será que não estamos, enquanto profissionais de saúde, contribuindo para perpetuar esse ciclo de sofrimento? Será que, ao invés de invalidar essas queixas, não deveríamos acolhê-las e buscar entender o que realmente está acontecendo?
A Necessidade de Acolhimento e Suporte Adequado
Quando finalmente recebo essas meninas em meu consultório, muitas vezes já estou lidando com uma adolescente esgotada física e emocionalmente. É essencial que, como pais e profissionais de saúde, ofereçamos um espaço acolhedor, onde suas queixas sejam validadas e compreendidas dentro do contexto do autismo e da hipermobilidade.
Isso significa olhar além das aparências. Uma menina que camufla suas dificuldades pode parecer tímida, reservada, mas por dentro estar enfrentando uma batalha diária para sobreviver a um mundo caótico e barulhento. Da mesma forma, uma menina que vive com dores pode não conseguir acompanhar o ritmo de suas colegas e acabar se isolando, sentindo-se ainda mais inadequada. É muito comum que as meninas se retraiam cada vez mais na adolescência.
Entender que esses sintomas estão interligados — a hipermobilidade exacerbando o impacto do autismo e vice-versa — é crucial para oferecer um suporte realmente eficaz. Não basta apenas tratar as dores articulares ou os episódios de fadiga; precisamos também abordar as dificuldades sociais, comportamentais e emocionais que essas meninas enfrentam.
O Que Podemos Fazer para Ajudar?
A primeira etapa é a conscientização. Precisamos falar mais sobre o autismo em meninas, suas manifestações peculiares e como ele pode se apresentar de forma diferente da dos meninos. Isso não apenas ajuda a evitar diagnósticos errados, mas também permite que essas jovens encontrem um caminho de autocompreensão e aceitação.
Como pais e profissionais, precisamos estar atentos às queixas físicas e emocionais, procurando sempre enxergar além do óbvio. Aqui estão algumas estratégias que podem ajudar:
1. Validar as emoções e preocupações dessas meninas é o primeiro passo. Dizer coisas como “Eu acredito em você” e “Sei que não é fácil” pode fazer uma diferença enorme em um contexto onde elas estão acostumadas a serem desacreditadas.
2. Técnicas de integração sensorial, exercícios para fortalecimento muscular e ajustes na rotina escolar e social podem ajudar a reduzir a sobrecarga física e emocional dessas meninas.
3. Trabalhar junto às escolas para garantir que as meninas recebam as adaptações necessárias é fundamental. Pequenas mudanças, como um local mais silencioso para realizar provas ou intervalos regulares para descansar, podem melhorar a qualidade de vida e o rendimento acadêmico.
4. Encorajar a participação em grupos de apoio para autistas e famílias. Compartilhar experiências e encontrar outras meninas com histórias semelhantes pode ajudar muito no processo de aceitação e pertencimento.
Transformando Dor em Força: O Poder do Acolhimento
O acolhimento é a base de todo tratamento bem-sucedido. Quando essas meninas, que já passaram por tantos momentos de invalidação e incompreensão, encontram um ambiente onde suas dores são levadas a sério, algo poderoso acontece: elas começam a acreditar em si mesmas novamente.
Durante minhas consultas, faço questão de criar esse ambiente seguro. Pergunto sobre suas dores, sobre como se sentem quando estão em ambientes barulhentos ou com muitas pessoas, e sempre tento validar suas experiências. Isso pode parecer simples, mas faz toda a diferença. Dizer algo como “Entendo o quanto isso pode ser difícil” ou “Não se preocupe, você não está exagerando” ajuda a abrir portas para uma comunicação mais sincera e para um plano de tratamento que realmente leve em consideração as necessidades dessa paciente.
O Autismo e a Hipermobilidade na Minha Vida
Sempre acreditei que ser médica era mais do que uma profissão; era uma forma de ajudar as pessoas a se encontrarem e se entenderem. Quando comecei a perceber as manifestações do autismo em mim mesma — a necessidade de rotina, as sensibilidades exacerbadas e a exaustão diante de interações sociais —, senti um misto de alívio e desconcerto. Por muitos anos, eu pensei que tudo isso era apenas resultado do estresse ou de uma “personalidade introvertida demais”.
Perceber como o autismo e a hipermobilidade influenciavam a forma como eu lidava com o mundo foi libertador. Ao mesmo tempo, me fez questionar: quantas meninas ainda estão por aí, sofrendo em silêncio, sem saber que suas dores — tanto físicas quanto emocionais — têm uma explicação? Quantas dessas jovens são incompreendidas, vistas como “dramáticas”, enquanto na verdade estão lutando contra uma batalha interna que só quem vive pode compreender?
Meu objetivo, a partir dessa autocompreensão, passou a ser ajudar outras meninas e suas famílias a encontrarem suas respostas mais cedo, para que o sofrimento não se prolongue por tanto tempo. Encorajo cada mãe, pai ou profissional de saúde que esteja lendo este artigo a abrir um diálogo sensível e empático sobre o tema. Ao invés de julgar ou minimizar os sintomas dessas jovens, pergunte-se: será que há algo mais por trás dessa angústia? Será que essa menina não está, na verdade, usando todo o seu esforço para parecer “normal”, enquanto se sente perdida e exausta?
Que Tal Quebrarmos esse Ciclo de Invisibilidade?
Se você é mãe ou pai de uma menina que apresenta esses sinais — dificuldades sociais, emocionais ou comportamentais associadas a sintomas físicos como dores articulares e fadiga —, eu te encorajo a procurar ajuda especializada. Se você é um profissional de saúde, convido-o a se aprofundar mais no tema do autismo em meninas e na relação com a hipermobilidade. Não deixe que essas jovens permaneçam invisíveis e sofrendo em silêncio. Elas merecem ser vistas, compreendidas e, acima de tudo, respeitadas.
Compartilhe este artigo com outras pessoas que possam se beneficiar desse conhecimento.
O Caminho para um Diagnóstico Mais Justo
Compreender o autismo em meninas e suas nuances é um passo fundamental para transformar o atendimento e a qualidade de vida dessas jovens. Reconhecer a complexidade de suas condições e a relação com a hipermobilidade é um desafio que precisamos enfrentar com empatia e conhecimento.
Essas meninas não estão buscando atenção, como muitos acreditam. Elas estão buscando compreensão. E cabe a nós, enquanto pais, profissionais de saúde e sociedade, oferecer um ambiente onde possam se sentir seguras para serem quem realmente são.
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Dra. Kaliny Cristine Trevezani de Souza
Médica Pediatra
CRMDF 20469 | RQE 12424
Leia também: Desvendando o Autismo: Compreensão, diagnóstico e tratamento
Bibliografia
1. BUTLER, Gareth E.; EVANS, Virginia; CHRISTIE, Emma. Barriers to Autism Spectrum Disorder Diagnosis for Young Women and Girls: a Systematic Review. Review Journal of Autism and Developmental Disorders.
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4. ORLANDO COLLEGE OF OSTEOPATHIC MEDICINE et al. Diagnostic Challenges of High-Functioning Autism Spectrum Disorder in Females. Cureus Journal of Medical Science, 2024.
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