Veja neste artigo como a hipermobilidade e a neurodivergência se relacionam com a desregulação emocional e o impacto no corpo e na mente.
Se você é neurodivergente, talvez diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e sente que suas emoções funcionam como uma montanha-russa (intensas, repentinas e difíceis de controlar), provavelmente está lidando com a Desregulação Emocional (DRE).
A DRE vai muito além de uma simples dificuldade em lidar com sentimentos. Ela é uma experiência intensa que consome energia, gera sofrimento e afeta profundamente a qualidade de vida.
Historicamente, olhamos para esta desregulação apenas apenas sob a ótica mental. Entretanto, pesquisas recentes, que investigam a relação entre neurodivergência e hipermobilidade articular (frequentemente associada ao transtorno do espectro de hipermobilidade (TEH), à Síndrome de Ehlers-Danlos (SED) e à hipermobilidade articular generalizada, também chamada de frouxidão ligamentar), trazem uma visão revolucionária: o corpo pode estar ativamente contribuindo para a desregulação emocional.
O modelo do elo: propriocepção e o sinal ruidoso
A literatura científica sugere um modelo conceitual que conecta a desregulação emocional em pessoas neurodivergentes ao impacto proprioceptivo da hipermobilidade articular.
O tecido conjuntivo, que sofre alterações na Síndrome de Ehlers-Danlos e em outras condições do espectro de hipermobilidade, é o “cimento” que dá estrutura ao corpo, incluindo a base dos nervos que informam o cérebro sobre onde estamos no espaço.
- Variação Constitucional: A variação constitucional no tecido conjuntivo atua como um fator que interfere nos mediadores proprioceptivos da experiência afetiva.
- O Erro Proprioceptivo: A hipermobilidade está associada a dificuldades na propriocepção, o sentido que nos diz onde nossos membros estão, mesmo com os olhos fechados. O modelo propõe que o processamento impreciso dos sinais de erro proprioceptivo pode ser a base da conexão entre neurodivergência e desregulação. Ou seja, o corpo envia informações “ruidosas” ou confusas ao cérebro, e essa incerteza sensorial contribui para a instabilidade emocional.
- A Estrutura Cerebral: Essa vulnerabilidade psiquiátrica é favorecida por diferenças estruturais cerebrais em áreas envolvidas no processamento emocional, na atenção e no controle cognitivo da dor e das emoções negativas em indivíduos hipermóveis.
A DRE é, inclusive, listada como um dos problemas emocionais que se enquadram nas dificuldades ESSENCE (Síndromes Sintomáticas Precoces).
Em mulheres autistas, os desafios de regulação emocional podem ser ainda mais acentuados e variar de acordo com o ciclo hormonal.
O impacto da desregulação emocional na saúde mental
A DRE, alimentada por essa disfunção entre corpo e mente, tem um impacto profundo na saúde psicológica.
Vulnerabilidade à ansiedade e depressão
Distúrbios de humor (como ansiedade e depressão) são manifestações psiquiátricas comuns e estão fortemente associadas à hipermobilidade. Pesquisas apontam que pessoas com hipermobilidade têm maior risco de desenvolver transtornos de ansiedade.
Afeto negativo
Pacientes com transtorno do espectro de hipermobilidade ou Síndrome de Ehlers-Danlos frequentemente relatam sintomas que intensificam a desregulação emocional e o sofrimento psicológico, como:
- Sentimento de angústia (“feeling distressed”);
- Sentimento de tristeza ou depressão (“feeling depressed”).
Risco elevado em autistas
Pessoas autistas já enfrentam taxas elevadas de dificuldades de saúde mental e risco de suicídio. Portanto, quando há também um quadro de hipermobilidade, que aumenta a dor e a DRE, a vulnerabilidade se torna ainda maior.
O custo social da desregulação
A DRE crônica e a gestão dos sintomas físicos resultantes do Hipermobilidade (HSD) levam a graves consequências sociais:
Isolamento social
O isolamento é, além disso, comumente relatado por pacientes com Síndrome de Ehlers-Danlos (SED) ou hipermobilidade articular generalizada. Esses indivíduos, por conseguinte, descrevem um isolamento progressivo (creeping isolation), perda de grupos sociais inteiros e, eventualmente, relacionamentos atrofiados.
Sentimento de estigma
Pacientes nessas condições frequentemente relatam se sentir fraudulentos, estigmatizados ou mal compreendidos. Isso ocorre porque os profissionais de saúde tendem a focar nas manifestações psicológicas como a causa primária, negligenciando a raiz física do sofrimento.
Trauma clínico
Interações negativas e pouco empáticas com profissionais de saúde podem causar traumas clínicos, dificultando a busca por ajuda e tratamento adequado.
Orientações práticas: o caminho para o manejo do eixo corpo-mente
O tratamento para a DRE nesse contexto precisa ser holístico, integrando corpo e mente.
Validação emocional e física
A DRE está ligada ao seu corpo e à sua neurologia. Por isso, o cuidado deve ser validador e afirmativo da neurodiversidade, reconhecendo que o sofrimento emocional muitas vezes é consequência das dores físicas e da sobrecarga corporal.
Intervenções focadas na propriocepção
As intervenções mais promissoras são aquelas que visam melhorar a precisão proprioceptiva e interoceptiva. Ou seja, a percepção das sensações internas do corpo.
- O treinamento interoceptivo tem demonstrado capacidade de reduzir a ansiedade e aumentar a consciência corporal em adultos autistas.
- A fisioterapia com foco em fortalecer a estabilidade articular e a melhoria da propriocepção é crucial, pois pode impactar positivamente a DRE.
Cuidado multidisciplinar
O manejo eficaz envolve uma equipe que combina saúde mental e saúde física. O apoio psicológico e/ou a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), juntamente com o tratamento físico (fisioterapia neuromuscular), são essenciais para lidar com a ansiedade e a depressão associadas, melhorando a Qualidade de Vida (QoL).
Ao entender que a sua desregulação emocional é, portanto, uma resposta neurofisiológica a um corpo que processa as sensações de forma atípica, damos, consequentemente, o primeiro passo para um cuidado que é validador, transparente e verdadeiramente curativo.
A desregulação emocional é uma dificuldade em controlar emoções intensas, comum em pessoas neurodivergentes. Além disso, em muitos casos, ela está relacionada à hipermobilidade, que por sua vez altera os sinais corporais enviados ao cérebro, impactando diretamente o equilíbrio emocional e, consequentemente, o bem-estar.
Conclusão
Compreender que a desregulação emocional (DRE) é uma resposta neurofisiológica a um corpo que processa sensações de forma atípica é o primeiro passo para um cuidado mais humano e eficaz.
Sendo assim, ao reconhecer a conexão entre corpo e mente, abrimos espaço para um tratamento que valida a experiência individual e promove equilíbrio emocional genuíno.
Bibliografia
- Australian Evidence-Based Clinical Practice Guideline For Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD)
- A model linking emotional dysregulation in neurodivergent people to the proprioceptive impact of joint hypermobility.
- A connective tissue disorder may underlie ESSENCE problems in childhood
- Physical health of autistic girls and women: a scoping review
Leia também: Autismo e Hipermobilidade: O que muda no diagnóstico e no suporte diário?


